A festa de Cristo Rei encerra o ano cristão da Igreja Latina. No domingo seguinte tem início novo ano, com o tempo do Advento.
O século XX teve início com a consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus. Leão XIII pediu aos Chefes de Estado, bispos e párocos que consagrassem as realidades sob seus cuidados ao Sagrado Coração de Jesus. Foi um movimento que se inseria no empenho da Igreja em recuperar o espírito cristão nas instituições e reaver o prestígio da própria Igreja frente ao mundo. Vivia-se num mundo conflagrado pelo laicismo, materialismo, positivismo, socialismo, racionalismo e a Igreja era considerada inimiga do progresso. Pio X, eleito papa em 1903, assumiu como lema “Restaurar todas as coisas em Cristo”, num sonho de reconstituição da velha Cristandade, vista muito no sentido de prestígio e poder. Isso não impediu que São Pio X fosse o Papa da Catequese, da Comunhão das crianças, da Comunhão frequente, da paz.
Nesse espírito, em 1925 o Papa Pio XI instituiu a festa litúrgica de Cristo Rei. O título de festa expressava seu objetivo: fazer o mundo ajoelhar-se diante de Jesus Cristo, ele sim, o Rei do Universo. Na pastoral da Ação Católica essa festa era a oração para se reconstruir a sociedade em torno de Cristo, do Papa e da Igreja. Havia um sonho de triunfalismo, não se pode negar.
Mas, a Liturgia não se submete ao espírito do tempo e seu conteúdo não expressa o desejo humano: ela brota da Palavra de Deus compreendida na ação do Espírito. Por isso mesmo, a surpresa está no Evangelho de Cristo Rei: não é o Cristo Senhor fazendo milagres, ressuscitando Lázaro, ou melhor, na gloriosa Ascensão em que o Senhor proclama que tem todo o poder, toda a autoridade.
Os liturgistas de então, e da renovação conciliar, surprendem com as escolhas da Palavra de Deus, libertando-nos de qualquer sonho triunfalista. Para o Ano A (Mateus) Cristo surge no grande painel do Juízo final (Mt 25), separando as pessoas de acordo com a escolha que fizeram em suas vidas pró ou contra os pobres. Para a primeira leitura, o texto de Ezequiel em que o Senhor declara: “Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas, tomar conta delas” (cf. Ez 34). Para o Ano B (Marcos), esse ano em que vivemos, um texto que surpreende: Jesus sendo flagelado no pretório de Pilatos, humilhado. “Tu és rei?”, pergunta o Governador, e o Homem derrotado responde “Eu sou Rei”. Mas Rei num Reino de Verdade, não na moda do mundo corroído pelo poder (cf. Jo 18, 33-37). Para o Ano C (Lucas), o Cristo Rei é o Senhor crucificado, escarnecido pelo desafio: “A outros salvou. Salve-se a si mesmo”. E surge o ladrão que vê nele um Rei de Amor e lhe pede: “Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reinado. Ainda hoje estarás comigo no Paraíso”, declara o Senhor (cf. Lc 23, 35-43). Os Pais do Oriente cristão dão a São Dimas, o bom larão, o título de Patrono dos Teólogos, pois foi o primeiro que proclamou o Reinado de Cristo e nele ingressou.
A festa de Cristo Rei celebra o verdadeiro Cristo Rei: não é o rei que explora o povo, mas que lhe dá a vida; não é o rei rodeado por áulicos, mas um rei cercado de pobres e pecadores; não é um rei forte pelo exército, mas um rei forte no Trono da Cruz, o Trono do Amor, único Trono donde se pode reinar para que todos participem da vida. Sua nobreza é constituída pelos Santos, sua aristocracia pelos que se dedicam aos humildes, sua elite pelos pecadores que buscam reconciliação. A força desse Rei é sua fragilidade total: somente quem tem todo o poder pode fazer dele um serviço. É assim Jesus Cristo, Rei do Universo.
E nós, como contemplamos o Senhor da Glória: pedindo poder, prestígio, força, honras, ou amor, serviço, humildade, doação? Na Igreja se encontra, de modo ainda imperfeito, o Reino de Cristo: é servidora humilde, ou instituição triunfante competindo com as instituições do poder mundano? A autoridade na Igreja é serviço humilde ou é tirania dos inseguros?
Talvez na festa de Cristo Rei os ministros endossem belos paramentos, brancos e bordados a ouro. E depois terão de explicar a história de um Rei crucificado, com o lado traspassado pela lança. A história é tão bela que merece mesmo belos paramentos, que reflitam as luzes da igreja e dêm a alegria do servir. A celebração da Eucaristia nasce desse lado aberto donde jorra Sangue e Água. Nasce da doação total e radical por amor. Convida-nos a ingressar nesse estranho Reino do Homem crucificado e ressuscitado, onde não há lugar para triunfalismo, cristandade, prestígio.
O Prefácio que dá início à Oração Eucarística na festa de Cristo Rei nos oferece todo o conteúdo do Reino de Cristo: reino eterno e universal: reino da verdade e da vida, da santidade e da graça, da justiça, do amor e da paz.
Assim é Cristo Rei. Refletindo-nos nele, construímos seu Reino na terra.
Pe. José Artulino Besen*
Fonte: http://pebesen.wordpress.com/
*O Autor, Pe. José Artulino Besen é historiador eclesiástico, professor de História da Igreja no Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC desde 1975 e pároco em Itajaí(SC).