Pe. Tarcísio Pedro Vieira
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Glória
Na quinta-feira após o Domingo da Santíssima Trindade, a Igreja celebra a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, tradicionalmente chamada Festa de Corpus Christi. Esta solenidade recorda o grande Mistério da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, celebrado no Tríduo Pascal. A Festa de Corpus Christi, assim, não é uma duplicação da Quinta-feira Santa, mas dela recebe seu significado maior. Na Quinta-feira Santa a Liturgia da Palavra destaca a Eucaristia como a nova páscoa e sacrifício cristão, no contexto imediato da paixão e morte gloriosa do Senhor. Na Solenidade de Corpus Christi, nos três anos da liturgia, os textos bíblicos enfatizam a relação da Eucaristia com a Comunidade (ano A), com a Nova Aliança pelo Sangue de Cristo (ano B), e como Pão Eucarístico, alimento do povo peregrino de Deus (ano C). Além disso, na liturgia da Solenidade de Corpus Christi há uma dimensão especial de profissão pública de fé na presença eucarística de Cristo por parte da Igreja, através da procissão solene.
Desde os albores do século XII, a fé e a devoção eucarística, por diversas razões, inclinaram-se notavelmente para a doutrina e a presença real de Cristo na Eucaristia. Entre essas razões, destacam-se: a reação da Igreja contra as heresias da época (a heresia de Berengário de Tours, por exemplo, minimizava e até chegava a negar a doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia); a prática eucarística do desejo dos fieis de ver a hóstia consagrada na missa; o grande temor reverencial ante a presença real e a profunda consciência de indignidade pessoal. Na época, ver a hóstia constituía um ato de comunhão espiritual, pois a comunhão sacramental era rara. Este clima e contexto eclesial favoreceram a introdução de uma nova festa eucarística. Juliana de Mont Cornillon, monja de vida estritamente claustral – agostiniana, da Diocese de Lieja (hoje, Bélgica), em 1208 teve uma experiência mística, na qual viu uma lua cheia com mancha escura. Recebeu, então, a revelação, por parte de Cristo, de que aquela mancha significava a ausência no calendário de uma festa especial em honra da Eucaristia e que ela deveria promover tal festa. Juliana comunicou estas aparições a Dom Roberto de Thourotte, o então Bispo de Lieja, a Dominico Hugh, mais tarde Cardeal Legado dos Países Baixos, e a Tiago Pantaleão de Troyes, nessa época Arcediago de Lieja e mais tarde Papa Urbano IV. Passaram alguns anos, e ela não obteve êxito, pois ninguém se propunha a ouvi-la. Em 1246, Dom Roberto de Thourotte, Bispo de Lieja, promulgou um decreto estabelecendo a Festa em sua Diocese, no segundo domingo depois de Pentecostes. Em 1251, o legado do Papa, Cardeal Hugh de Saint-Cher inaugurou a Festa em Lieja. A partir de então, passou a ser celebrada na quinta-feira depois da oitava de Pentecostes. Naquela época, o Papa Urbano IV tinha sua corte em Orvieto, um pouco ao norte de Roma. Muito perto dessa localidade fica a cidade de Bolsena, onde em 1263 (ou 1264) aconteceu o famoso Milagre de Bolsena: um sacerdote que celebrava a Santa Missa teve dúvidas de que a Consagração da hóstia fosse algo real. No momento de partir a Sagrada Hóstia, viu sair dela sangue, que empapou o corporal (alfaia litúrgica sobre a qual se apóiam o cálice e a patena durante a Missa). A venerada relíquia foi levada em procissão a Orvieto em 19 junho de 1264. Hoje se conserva o corporal, em Orvieto, onde também se pode ver a pedra do altar de Bolsena, manchada de sangue. O Santo Padre, movido pelo prodígio, e por petição de vários bispos, fez com que a festa de Corpus Christi se estendesse por toda a Igreja por meio da bula “Transiturus de hoc mundo ad Patrem”, de 11 de agosto do mesmo ano, fixando-a para a quinta-feira depois da oitava de Pentecostes, e outorgando muitas indulgências a todos que assistissem a Santa Missa e o ofício nesse dia. Santa Juliana de Mont Cornillon foi canonizada em 1599 pelo Papa Clemente VIII. Em seguida, segundo alguns biógrafos, o Papa Urbano IV encarregou São Boaventura e Santo Tomás de Aquino de escrever um ofício – o texto da liturgia. Quando o Pontífice começou a ler, em voz alta, o ofício feito por Santo Tomás de Aquino – o Doutor Angélico, São Boaventura o achou tão belo que foi rasgando o seu em pedaços, para não concorrer com o de Santo Tomás.
A Festa de Corpus Christi tomou caráter universal definitivo 50 anos depois de Urbano IV, a partir do século XIV, quando o Papa Clemente V, em 1313, confirmou a Bula de Urbano IV nas Constituições Clementinas do Corpus Iuris Canonici, tornando a Festa da Eucaristia um dever canônico mundial. Em 1317, o Papa João XXII publicou esse Corpus Iuris Canonici que prescrevia o dever de levar a Eucaristia em procissão pelas vias públicas. A Festa foi aceita em Colônia em 1306; em Worms a adotaram em 1315; em Estrasburgo em 1316. Na Inglaterra foi introduzida, a partir da Bélgica, entre 1320 e 1325. Nos Estados Unidos e nos outros países a solenidade era celebrada no domingo depois do domingo da Santíssima Trindade. Finalmente, o Concílio de Trento (1545-1563) declarou que, muito piedosa e religiosamente, todos os anos, em determinado dia festivo, seja celebrado este excelso e venerável sacramento com singular veneração e solenidade; e reverente e honorificamente seja levado em procissão pelas ruas e lugares públicos. No início, todavia, não havia procissão. A primeira notícia que se tem remonta ao ano de 1279, em Colônia, na Alemanha. Rapidamente, outras igrejas (França e Itália) seguiram-lhe o exemplo. De fato, nenhum dos decretos fala da procissão com o Santíssimo como um aspecto da celebração. Porém, essas procissões foram dotadas de indulgências pelos Papas Martinho V e Eugênio IV, e se fizeram bastante comuns a partir do século XIV. Então, a homenagem que fazemos hoje a Jesus, com tapetes, com cantos, com procissão é para manifestar nosso reconhecimento e nossa adoração, bem como para recordar que Jesus se fez e se faz comida e bebida, alimento da caminhada. Em 1983, o novo Código de Direito Canônico, Cânon 944, manteve a obrigação de se manifestar ‘o testemunho público de veneração para com a Santíssima Eucaristia’ (cf. Instrução Eucharisticum Mysterium, n. 59) e ‘onde for possível, haja procissão pelas vias públicas’, mas os bispos escolham a melhor maneira de fazer isso, garantindo a participação do povo e a dignidade da manifestação. “A devota participação dos fieis na procissão eucarística da Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é uma graça do Senhor que anualmente enche de alegria quantos dela participam” (cf. Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n. 10; cf. Instrução Redemptionis Sacramentum, n. 142-144).